Um brinde às memórias


Eu e o meu pai numa tarde de domingo

Filho de peixe, peixinho é? Bem, levando em conta a minha relação com os pormenores técnicos do vinho, a resposta está fácil: nem sempre! Ainda que eu saiba apreciar a qualidade, meu grau de profundidade na matéria é risível. Mas o que sei evita a dor de cabeça oriunda de porcaria rotulada – o que, para mim, é o suficiente. 

Devo essa bagagem ao meu pai, Sérgio Inglez de Souza, que adorna o precioso conhecimento que tem com uma estampa amistosa, descontraída. Ele é o oposto daquela pose arrogante do raspa-nariz-em-teto-alheio que tantos entendidos sustentam por aí. Absorvi (e ainda absorvo) os detalhes com as tantas garrafas que secamos juntos nesses anos todos. Sempre à base de risadas, do descompromisso e de papos leves sobre o hoje, o ontem e o que poderá vir - e não me lembro de uma ocasião sequer que tenha sido diferente disso.

Seu mais recente livro, Memórias do Vinho Gaúcho, saiu no final de 2014, pela Editora AGE. Surgiu da parceria com Rinaldo Dal Pizzol, respeitado e importante nome por trás da história do vinho do Rio Grande do Sul. Eu não saberia descrever aqui o trampo que deu, os longos anos de pesquisa, de redação, de troca de ideias e de visitas dedicados a essa obra, que é composta por três volumes (o livro é um 3 em 1 de quase 4 kg). Mas estou certo de que o mapa da principal região vinícola do Brasil foi devidamente detalhado nas 752 páginas produzidas. 

Posso até ser taxado de suspeito para falar o que pretendo, mas tenho a consciência de que não sou um hipócrita bundão. Sei porque conheço de perto o valor que tem esse trabalho. Por isso, digo com tranquilidade e de boca cheia que essa bela publicação é o O Tempo e o Vento da literatura enológica brasileira.

Eu bati o papo abaixo com o velho sobre o livro.

Pensando na história do vinho brasileiro, por que a importância do vinho gaúcho vai bem mais além do que o caráter regional? 
Já havia iniciativas isoladas de plantio de vinhos em outros estados, como nas cidades de São Roque, Jundiaí, Louveira e outras, em São Paulo; no Paraná, especialmente no bairro italiano de Santa Felicidade, em Curitiba, e em Minas Gerais, na região de Andradas. No entanto, essas produções nunca conheceram notoriedade nacional, além de terem sido elas próprias vetores de importação de vinho gaúcho.

A maior ligação da Serra Gaúcha com os grandes centros, como São Paulo e Rio, resultou na difusão inicial do vinho gaúcho pelos caminhoneiros que sempre traziam garrafões para vender. Hoje, ele está na mesa de bons restaurantes, em festas e comemorações, e já faz tímidas incursões no mercado internacional.

Para render três volumes, há quanto tempo de história registrado no livro e quais são alguns dos pontos-chave do vinho gaúcho? 
De história contínua, cerca de 140 anos – de 1875 até o início do presente milênio. No entanto, o livro destaca alguns episódios: 

- A empreitada de jesuítas espanhóis na região de fronteira, nas cercanias de Uruguaiana. Lá plantaram videiras e fizeram vinho de missa

- A chegada dos imigrantes italianos, a partir de 1875, cuja bagagem incluiu mudas de videiras europeias para seu consumo cotidiano 

- Introdução de videiras americanas e adoção de enxertia. Combateu-se, assim, a praga da filoxera e foi garantida a importação e o plantio de viníferas europeias nobres

- Assim, a vitivinicultura gaúcha passou de uma produção de 100% de variedades americanas (chegando à participação de cerca de 20% de uvas viníferas, as geram os bons vinhos) àqueles apreciados pelos entendidos mais sofisticados

Que tipo de peculiaridade mais a obra traz? 
Uma constatação curiosa é que, enquanto os espanhóis difundiram a vitivinicultura por todas as suas colônias, como o Chile ou a Argentina, Portugal proibiu a plantação de parreirais e a produção de vinho em sua colônia, para que não se criasse concorrência com os seus vinhos. Por isso, ocorreu praticamente um vazio entre a nossa descoberta e a Independência, mais de 300 anos de dormência para o desenvolvimento da vitivinicultura brasileira. 

Tivemos alguma iniciativa de vitivinicultura pelos imigrantes alemães, praticamente inexpressiva, se considerarmos o grande movimento iniciado, mais tarde, pelos italianos, que foram os fundadores do vinho brasileiro. Os alemães, assentados no sopé da Serra Gaúcha, também forneceram mudas aos italianos, que se estabeleceram serra acima.

O Rio Grande do Sul italiano está intimamente ligado ao vinho. Quem produz toma, quem não produz também toma. Você entra numa casa e é recebido com uma taça de vinho. As construções antigas são muito interessantes, a maior parte delas construída em função da produção do vinho.

Que lugar ocupa Memórias do Vinho Gaúcho na trajetória da sua vida?
Sempre gostei de vinho. Há décadas que pesquiso, nas incontáveis viagens que fiz, pelo Brasil e pelo resto do mundo, a produção de uva e de vinho. Percorri centenas de parreirais, além de vinícolas, universidades, centros de pesquisa. Na Europa, enfiei-me em brenhas, campos nevados, rincões inusitados. Nas Américas, andei por muitos países. Na Oceania, diverti-me com as botas e bermudas dos viticultores e estudiosos. Onde estive conversei com todo tipo de gente, aqueles de mãos grossas pelo trabalho direto, aqueles dedicados ao estudo e os maestros do vinho, essa raça abençoada de enólogos.

Escrevi centenas de artigos para inúmeras mídias, além dos livros sobre vinho. Eu já tinha palmilhado o Rio Grande do Sul, conversado com muitos, alguns já falecidos, fotografado bastante. Com tudo isso na bagagem, abri a mala do vinho brasileiro e debrucei-me em sua história: estava na hora! Era necessário um trabalho que descrevesse a saga do vinho brasileiro dos primórdios à consolidação na passagem do século passado para o atual. Espero ter contribuído.


Henrique Inglez de Souza


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