Eric Clapton: o cara por trás do deus

Foto: Henrique Inglez de Souza

Passei pouco mais de um mês na companhia de Eric Clapton – um mês e meio, acho. Não pessoalmente. Eric Clapton – A Autobiografia (2007) é escrita num tom tão vivo que aproxima o leitor, que me fez sentir em contato direto com ele. 

Devo reconhecer que mostrar as entranhas com tamanho desprendimento nos detalhes é difícil e, ao mesmo tempo, admirável. Escancarar alegrias e podres grotescos e assumir travas emocionais custa caro. É penoso.

Por outro lado, além de admirável, encontrá-lo dividindo tanta cagada e uma coleção vasta de atitudes imbecis (algumas de mau caráter), me levou a repugnar o tipo de pessoa que o guitarrista ilustrou ser (ter sido?). Brigamos em muitas e muitas das quase 400 páginas do livro. E reforcei a implicância que nutro para o odioso crachá de “Deus da guitarra”. 

Essa implicância não é uma particularidade contra Clapton; é uma discordância para com esse monte de rótulos artificialmente criados que se costuma perpetuar. É o tipo de coisa que estraga o artista, ainda mais se este levar a sério e passar a crer que de fato é aquilo que dizem ser.

No caso de Clapton, sempre tive comigo que ele incorporou o tal Deus da guitarra. Tocar com sensibilidade e ter um talento ímpar são qualidades únicas. Porém, sacramentá-lo por isso (assim como outro qualquer) é demasiado – por mais singular que sejam seus atributos. É coisa boboca. 

Já me criticaram por essa postura, mas não dá para sufocar a realidade com o fanatismo, a tietagem. O ídolo não é sobre-humano. Quando o falsificamos assim, costumamos ter alguém distante e careiro demais. A música, enfim, cai para segundo plano em virtude do mito, que fatura alto.

Pensar assim permitiu-me desbravar e apreciar sua obra (muito boa, aliás) com uma isenção razoável. Interessante é que o próprio guitarrista reconhece no livro que encarnou a imagem glorificada criada em torno de seu nome. Admite que se deixou levar, o que me fez vibrar por cada dia dessa implicância que tenho. 

Eric Clapton – A Autobiografia me separou ainda mais o artista do homem. Trouxe-me a imagem de um cara fraco, perdido, cuja autoestima permaneceu afogada na lama por décadas. Os esforços para se tornar alguém, em sua maioria, miraram o egoísmo e um espantoso estado de espírito de “fodam-se os outros”.

Ainda nos primeiros capítulos Clapton demonstrou uma postura intransigente e que exigia do mundo a integral disposição a seus caprichos. E assim seguiu, até perto do final do livro. A cada página era sublinhada a tônica: só existe um jeito de ser, o dele, e só existe um coração pulsante de sentimentos, vontades, alegrias, dores, realizações e tristeza, o dele. Quando se cansava, jogava fora, sacaneava ou pouco se importava. Afinal de contas, ele é o Deus da guitarra! Fodam-se os outros! 

A responsabilidade sobre seu vício em drogas e o alcoolismo, Clapton balizou, durante anos, pela postura dos outros. Talvez fosse um traço desenvolvido na infância confusa que teve (por exemplo, descobriu que sua mãe, na realidade, era a avó e que a mãe mesmo o rejeitara).

Todavia, o tempo, a idade avançada e as muitas surras da vida parecem ter endireitado aspectos importantes (antes tarde do que nunca!). Ao redor do período em que escreveu a autobiografia (2006/2007), temos um senhor maduro e com menos impulsos idiotas. 

A obra reflete e passeia por diferentes fases da jornada de Eric Clapton com um ritmo delicioso. É claro que há coisas interessantes, tais quais detalhes de bastidores ao lado de figuras ímpares e de discos maravilhosos. O tom mal-humorado de minha resenha é fruto da eterna iconoclastia que regula meu lado fã do jornalista (ainda que como fã não endeuso ninguém).

Falar da própria vida esbarra em sentimentos e sensações que só quem se preza a tanto percebe. Uma autobiografia registra e divulga os fatos sem a carga real da emoção. Dá, portanto, margem a cada leitor dialogar com o texto de um jeito. Observei Clapton, o homem, com certo asco pelo monte de imbecilidade por trás desse endeusamento tonto que alimenta seu ego há gerações. Já o artista, permanece um cara criativo, talentoso e único, responsável por obras excepcionais do rock e do blues.

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