PAIXÃO VOLÁTIL
Música não é movida só por notas e escalas.
Tem muito de paixão no composto que forma o reboque geral. Desde a mais tímida
à mais exacerbada, a paixão é a conexão do prazer que nos coloca em contato com essa
arte. E ela tem formatos e temperaturas extremamente inconstantes, improváveis. Nada fixo, mas funciona sempre.
As manifestações são livres de qualquer
condição. Podem acontecer em qualquer lugar, momento, circunstância etc. Até
quando não temos uma fonte sonora damos nosso jeito. Batucamos na mesa, na
perna, na poltrona da frente no ônibus, chacoalhamos a chave e o chaveiro com
ritmo...
Os fãs
incondicionais, aqueles que consomem qualquer fragmento do estilo que admiram, são os mais expressivos. Nesse
ponto, o rock/metal produz os tipos mais enérgicos,
intensos. Basta ir a um show e observar as reações. São um espetáculo à parte.
Em 1996, fui à terceira edição do
festival Monsters of Rock, em São Paulo. Só banda legal. A atração
principal era o Iron Maiden, que promovia o primeiro disco com seu então novo
vocalista, Blaze Bayley. Esse show foi um típico exemplo dessa paixão à qual me
refiro – que vai do céu ao inferno e volta às nuvens em segundos, minutos.
Foi engraçado: assim que o penúltimo grupo
se despediu e o palco começou a ser preparado para os ícones britânicos, boa
parte do público gritava:
- Maiden! Maiden! Maiden! Maiden!
Maiden...
E então, o técnico do guitarrista Dave Murray surgiu para dar os acertos finais no equipamento e, claro, a galera foi ainda
mais à loucura. Ovacionou o anônimo e o ídolo (que não estava ali):
- Davêêê! Davêêê! Davêê! Davêêê...
Isso aconteceu com os técnicos de todos
os outros integrantes. Só mudou quando apareceu o cara de uma rádio de São
Paulo para falar de alguma promoção, a maioria não teve dúvida:
- Sai daêê, pooooorra!! Cuzão! – só
coisas de "alto nível", acompanhadas por um ataque do que estivesse à mão
e que desse para ser atirado na direção do infeliz.
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Normalmente, enquanto o palco está sendo
preparado e os equipamentos ajustados, a mesa de som do local coloca uma lista
de músicas para tocar. É uma maneira de dar aquela segurada na ansiedade.
Porém, o atraso de meia hora do Iron Maiden já se tornava extremamente
incômodo.
Comecei a ouvir manifestações de queixa:
"Começa logo, poooorra!", "vamo aêêê, caralho!!"... Instantes depois, aquilo se
transformou num forte coro de:
- Ei, Blaze, vá tomar no cu! Ei, Blaze,
vá tomar no cu!
Não era Blaze Bailey o culpado pelo
atraso, mas, na falta de alguém melhor, a galera descontou no vocalista, que
estava substituindo o eterno querido dos fãs, Bruce Dickinson. Este, por sinal,
também deu uma reforçada no protesto, indiretamente. Após reclamarem de Blaze,
muitos cantarolaram:
- Olê, olê, olê, olê... Brucêêê,
Brucêêê...
Mas a raiva durou pouco. Banda e público
fizeram as pazes rapidamente. Assim que as luzes se apagaram e o show,
finalmente, começou, todos festejaram um estrondoso
"aêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêêê..." A música que abriu a noite foi 'Man on the Edge',
do então recém-lançado disco gravado por Bayley ('The X-Factor').
Adivinhe? Os fãs se esquecessem da canseira e do ódio, haja vista a alegria que dava
para notar – nos mesmos que estavam hostilizando o novato:
- Blazêêê! Blazêêê! Blazêêê...
Aêêêêêêêê...
Sim, é meio incoerente, mas essa é a volatilidade da paixão que move a música. O show aconteceu no mais alto nível de
energia, embora a falta de Dickinson fosse visivelmente problemática (em termos
de química da banda). Mesmo assim, o público saiu em êxtase e do mesmo jeito
que apareceu, bradando:
- Maiden! Maiden! Maiden! Maiden...
Henrique Inglez de Souza
Henrique Inglez de Souza
Henrique, a mesma paixão dos fãs da música é transportada para o futebol. No caso do balípodo, o que separa o gênio do burro é apenas uma boa jogada ou um gol.
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