LIBERDADE: A DESCULPA MAIS DESCARADA DE TODAS AS HORAS

Tenho um conhecido que toca guitarra, é roqueiro daqueles que se fantasiam de hard-rockers anos 1980, tem banda e tal. Outro dia, me passou um vídeo dele tocando "um solo animal" que tinha criado para o seu "novo disco-solo" (como se fosse algo sensacional, tipo o Jimmy Page preparando um trabalho novo). OK, vamos lá! Cliquei no link do YouTube e me aparece o sujeito mostrando a tal "maravilha". Além da péssima qualidade (musical e de áudio), reparei em algo comum desse povo: por que todos os caras que gravam vídeos com suas performances escolhem o quarto como... err... cenário? Puta coisa ridícula! Fica o cara mandando ver na guitarra tendo ao fundo toalha pendurada na porta do armário, cachorrinho deitado na mesma cama em que há as roupas que a mamãe acabou de passar, além de outras besteiras.

Bom, implicâncias à parte, vamos ao que interessa. Na descrição do vídeo que ele me passou por e-mail está dizeres como "repare nesse solo. Toco com alma, com total desprendimento e liberdade". Tirando a falsa modéstia desse cara, me chamou a atenção outra coisa que se tornou comum: tocar com liberdade. Já perdi as contas de músicos incluindo esse “acessório” para se descrever ou falar de seus discos. Virou quase um item obrigatório. Mas pera aí! Vamos tomar cuidado com isso, pessoal! Liberdade tem um sentido tão amplo, tão... livre que há quem cruze os limites da coisa toda e comece a distorcer os significados que o termo permite, bem sua aplicação.

Não sou moralista, nem nasci no século 19, mas bom senso nunca fez mal a ninguém. Se repararmos, estão dando à liberdade o significado que melhor se encaixe às próprias vaidades. Ou seja, tem sido adotado o caminho mais fácil, aquele que justifique suas cagadas ou deficiências, e eu acho que não é por aí. Exemplos não faltam, não só na música. Se pegarmos os relacionamentos interpessoais (amizade, casamento, etc.), teremos uma coleção de casos em que o sujeito passa a usar a liberdade como passe de suas vontades e que se dane o resto.

Inevitavelmente, um panorama assim descamba para a banalização de muitas coisas. Até mesmo levar adiante uma reflexão como esta cai no desconfortável do "pega mal". Mas foda-se! Tenho consciência de que, desde que o homem apareceu no planeta, há uma minoria que cria e a grande maioria que repete. Portanto, não é de se estranhar que tenhamos chegado a esse ponto, o de haver pessoas com preguiça de pensar (ou de não serem estimuladas a isso). Assim, o santo xarope tem sido o que é 'fast-food'. Isso sim soa mais interessante a esse pessoal.

É por isso que, hoje, quando se diz tocar com a alma é quase que repetir um jargão para tapar a falta do que é realmente saber tocar. O que mais tenho ouvido é: "Toco com a alma, brou!" – e aí, enquanto mostra seus dotes ao instrumento, o cara me faz aquela expressão de quem acaba de dar uma topada com o dedinho machucado na quina da parede. Contudo, quando reparamos na porcaria de música que ele está tocando ou em seu solo exagerado e sem graça, fica difícil levar o papo adiante. Se eu gostasse de valorizar pose alheia, seria fanático por manequins de vitrine de butique.

Convenhamos: há aqueles que se colocam como os rock stars e há os que são vistos como tal (normalmente, estes últimos são mais autênticos e avessos à mídia – e não estou me referindo aos irmãos do Oasis, que são os coalhadas do rock). Enfim, tocar com liberdade, ter liberdade ou ser livre... Seja lá como se aplica a ideia de liberdade, o fato é que estão misturando as estações – de tudo. Isso me incomoda bastante, principalmente quando sou obrigado a ouvir as ladainhas para "justificar" as atitudes em prol da liberdade (própria, claro).

Outro dia, uma amiga minha disse (e não tem nada a ver com música) que é livre, que faz o que quiser e que, se o cara estiver a fim dela, terá de "respeitar" isso ou então "que se mande" – embora ela jure ser uma romântica à moda antiga (!!!). Traduzindo, ou o cara aceita que ela irá chifrá-lo, ou nem chegue perto. Quem tiver o mínimo de massa cinzenta irá perceber que ela não é um caso à parte. Os relacionamentos, de certa maneira, tornaram-se instantâneos, imediatos, descartáveis... fast-food (ou melhor, fast 'foda'). Ficou piegas amar. É por isso que o mundo está essa putaria que está. E aí eu te pergunto: em meio a tudo isso, como é que você tem certeza de que a sua música tem alma, tem sentimento e que toca com liberdade?


P.S.: Se você não se encaixa nesse grupo e se sentiu incomodado com o que escrevi, parabéns! Faz parte de uma minoria que ainda me mantém o otimismo aceso.



Henrique Inglez de Souza

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