O ROCK COMEU

Você assiste novela? – aí está uma pergunta inofensiva, mas que pode nos deixar em situações um tanto embaraçosas. Normalmente, não estou nem aí e digo a verdade: detesto novela! Entretanto, a coisa complica quando se está na sala da casa de sua nova namorada, junto com a mãe, a avó e a tia dela (todas noveleiras fanáticas, daquelas que ficam dando conselhos aos protagonistas das histórias diante da dela da TV).

Bem, quando me vi em uma sinuca de bico dessas, tentei ser político e disse que assistia quando criança. Mas a coisa começou a complicar porque elas passaram a me investigar, perguntando qual, quando e quem eram os atores. Enfim, mataram a minha farsa em poucos minutos. Reconheci que estava longe das teledramaturgias, mas amenizei dizendo que gostava mesmo das trilhas sonoras de algumas delas – e isso é verdade!

E lá vieram as três novamente querendo ver se eu não as estava tapeando com outro papo-furado. Como estava sendo sincero, usei meus bons argumentos e as convenci. Contei que nos anos 1980 adorava ver a abertura de 'A Gata Comeu' (Rede Globo/1985). Muito mais que a arte gráfica new wave, adorava a música. Era um hit do Magazine, 'Comeu', gravado especialmente para o tema (uma versão muito melhor que a original, composta por Caetano Veloso).

Os riffs, o balanço, a interpretação, tudo tem um quê de alto astral que te prende. O segredo da perfeita combinação talvez esteja no arranjo, que surgiu daquelas situações de puro supetão. Momentos antes de gravar, a banda – Kid Vinil (voz), Ted Gaz (guitarra), Lu Stopa (baixo) e Trinkão (bateria) – entrou em estúdio e deu uma rápida passada na canção. O resultado semeou um rápido sucesso pelo Brasil – ajudado, claro, pela novela. Por sinal, foi o último grande destaque musical deles.

Em 1985, o Magazine era uma banda querida e bem conhecida no país. Fazia inúmeros shows e aparições na TV, frutos de três compactos (dois deles grandes hits, 'Sou Boy' e 'Tic-Tic Nervoso') e um disco, o homônimo de 1983. Nesse embalo, surgiu o convite para a gravação do tema de abertura de 'A Gata Comeu'. Apesar de eles estarem mais interessados em fazer o que seria seu segundo álbum, acabaram abraçando a causa.

As gravações para o quarto compacto aconteceram no estúdio Nas Nuvens (RJ), em abril de 1985. Houve as participações de Zé Luís (sax) e Liminha (guitarra), que também dividiu a produção com Pena Schmidt e cuidou dos arranjos com Ted Gaz. No lado B entrou 'Crucial', uma faixa instrumental de quase 5 minutos de duração. ‘Comeu’ (WEA/Warner Music) sagrou-se mais um gol de placa do quarteto paulistano.

Você consegue se imaginar na mesma situação? Nada como estar no topo de seu trabalho, hein? Porém, o pacote com tudo de bom que algo assim costuma trazer inclui desgastes. Neste caso, a rotina pesou e fez Kid Vinil pedir as contas, no início de 1987. Sobre a decisão, ele certa vez me confidenciou ter sido precipitada. A banda até tentou seguir adiante sem sua principal figura, assim como o vocalista arriscou a carreira solo (Kid Vinil & os Heróis do Brasil). Entretanto, ambas as investidas foram parar no ralo do fracasso.

Quando penso no desfecho do Magazine, bate certa tristeza. Esse pessoal sabia dar um ar bem-humorado ao rock, pois tinha interpretação e carisma. Acha besteira? Mas não é! Estamos falando de anos em que fazer rock com descontração não tropeçava no pejorativo rótulo de "bandas engraçadinhas". Quem se metia no assunto sabia conduzir com naturalidade, haja vista os conterrâneos do Ultraje a Rigor. Hoje, a coisa descambou para um lado tão sem graça (até mesmo para o rock "sério") que acabo até preferindo fingir que gosto de assistir novelas.


Henrique Inglez de Souza

Comentários

  1. Concordo plenamente que a "coisa descambou", também curti Magazine, Ultraje, Inimigos do Rei e outras.Mas acredito que o saudosismo anda atrapalhando o nosso faro para coisas novas e legais. E também não tenho paciência pra ver novela, e olha que já tentei pra não passar por essas saias justas, descobrir que o melhor e falar que nem vê TV, rsrsrs. Abçs

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  2. Hehe... Pode crer, Danny! Também acho o saudosismo um saco (já escrevi sobre isso, por sinal... recentemente no blog). Tem muita coisa legal hj em dia, mas a proporção em relação às merdas é pequena (nos anos 1980 tbm tinha muita merda). O lance é que hj fica meio solto escolher os clássicos, pois não temos tantas rádios fortes como antes. Então, os bons não conseguem o espaço digno. Achei curioso esse lance de novelas e como me lembrou de um som bom pacas. Reverenciar não é babar ovo, né mesmo?

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  3. Também não gosto de novelas, mas pelo tempo que se mantem preso, adoro as bandas que citou,e olha recordar é viver, e comparação existe, quem sabe assim se encontre cada dia mais bandas legais.
    abração

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  4. Exato, Mary! Recordar é saudável. O que estraga é viver em função disso, que é a síndrome da nostalgia piegas. Concordo com vc de que o passado pode ser útil para ajudar a inspirar bandas novas a optar por caminhos genuínos e musicais (e não estereótipos do tipo café amargo requentado). Abração procê tbm!

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