UM SCORPIONS QUE POUCOS CONHECEM

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Hoje foi um daqueles dias dedicados a uma única banda. Nada planejado, mas sabe quando calha de escutarmos uma música, depois outra e outra e mais outras? Pois bem, isso aconteceu comigo ao longo de um dia inteiro, desde a manhã ao final da tarde. Os protagonistas? O Scorpions, uma instituição do hard rock mundial, que, se fosse líquida, eu bebia que nem cerveja gelada.

"Você é fã deles?", perguntou-me um camarada que estava por perto. Não resisti e mandei: "De forma alguma! Estou escutando praticamente a discografia completa dos caras, mas é só para mostrar que odeio o som". Ele esboçou um sorriso meio perdido, de quem fica na dúvida se acredita ou não. Enfim, ganhou uma expressão de anchova grelhada.

Àquela altura, eu já havia visitado boa parte do período 1979-1990 – o mais conhecido. Da coletânea que tenho, acabei me embrenhando pelos discos originais mesmo, especialmente 'Lovedrive' (1979), 'Blackout' (1982) e 'Love at First Sting' (1984). Entretanto, me veio uma vontade imensa de ouvir o Scorpions dos anos 1970, que, pra mim, é outra banda. Muitos acham que eles surgiram com 'Still Loving You' ou 'Rock You Like a Hurricane', mas não. Entre 1972 e 1978, o quinteto alemão era uma fera rebelde e sedenta por percorrer caminhos insanos do rock.

Tivemos álbuns maravilhosos e distantes do hard meloso com o qual se consagrariam anos mais tarde. Apesar de o debute ter sido com o guitarrista Michael Schenker (1972), foi seu substituto quem incendiou aqueles anos da banda. Esse cara chama-se Ulrich "Uli Jon" Roth, quem tive a honra de entrevistar algumas vezes. É um "doido", como todo ás, e seu grande ídolo era (e ainda deve ser) Jimi Hendrix. Além de fazer miúdo com os riffs e solos endiabrados que compunha, encarava os vocais principais em algumas das canções.

As músicas do Scorpions naquela década são o que entendemos por viscerais. Poderia citar 'Hell Cat', 'Virgin Killer', 'The Sails of Charon' e mais um sem-número. Contudo, um registro é capaz de resumir bem tal química: o ao vivo 'Tokyo Tapes' (1978). O que se encontra ali é um pouco de alta voltagem, músicos à flor da pele, abordagem animalesca de guitarra e rock, muito rock na cabeça!

O time de então era Klaus Meine (vocal), Francis Buchholz (baixo), Rudolf Schenker (guitarra-base), Herman Rerebell (bateria) e ele, Uli Roth (guitarra-solo), que fazia sua turnê de despedida. Embora tenha três faixas descartáveis ('Hound Dog', 'Long Tall Sally', 'Kōjō no Tsuki'), a energia da performance no álbum te arremata facilmente.

Depois de abrir com 'All Night Long', o set nos traz 'Pictured Life', uma obra-prima, dona de um dos melhores riffs que já ouvi. Tem uma levada alto astral e um refrão tão cativante quanto o solo. Com o terreno preparado, curtimos o rockão 'Backstage Queen' e 'Polar Nights', com a qual Roth escancara sua reverência a Jimi Hendrix – os riffs são praticamente os mesmos de 'Gypsy Eyes'.

As baladas do Scorpions naquela época tinham menos açúcar e traziam certo quê de psicodelia (bem de leve, é verdade). Duas das melhores deles estão em 'Tokyo Tapes': 'In Trance' (clássico com pinta cult) e a pérola 'We'll Burn the Sky' (a banda tocou esta em shows recentes e o impacto foi quase o mesmo).

O miolo do disco guarda 'In Search of the Peace of Mind', resgatada da época de Michael Schenker, a viagem de quase dez minutos 'Fly to the Rainbow' e 'He's a Woman, She's a Man', que surgiu de uma experiência real dos caras, quando cruzaram uma "linda mulher" de voz grossa por suas noitadas roqueiras.

Eis que chega uma das melhores do registro: 'Speedy's Coming'. Uli Roth não economiza nas alavancadas, nem nos licks. Mesmo sem os dois solos da versão original, o único que conferimos devasta geral. É superior. Incluo na lista das melhores faixas 'Steamrock Fever' e a que vem logo a seguir, 'Dark Lady'. Acho que repito essas três umas N vezes. São classic rock em sua essência, viscerais, acontecendo em cima do palco e com o calor fundamental do público (mesmo que as plateias japonesas sejam tradicionalmente "bem-comportadas" demais para o rock).

'Tokyo Tapes' é um dos discos ao vivo dos sonhos para muitos que conheço. Foi gravado durante as duas apresentações do Scorpions em Tóquio, nos dias 24 e 27 de abril de 1978 – literalmente, as últimas aparições de Uli Roth com a banda. Chegavam ao fim cinco anos muito produtivos, mas pouco comentados hoje em dia.

O mesmo cara que me perguntou se eu gostava do Scorpions reapareceu quando eu escutava esse disco. Mandou um comentário tão idiota quanto ele: "Ahhhh, tá vendo? Não aguentou o Scorpions e mudou de banda, né?" Olhei para ele e pensei em sugerir tomar em um lugar bem conhecido e nada atrativo. Mas acabei desencanando e respondendo: "Bom, de certa forma, mudei mesmo de banda. Estou ouvindo uma que não existe mais" - E não é verdade?


Henrique Inglez de Souza

Comentários

  1. 'Tokyo Tapes' encerra um ciclo na carreira do Scorpions. É certamente um dos maiores registros ao vivo da história do rock. Com a saída de Ulrich Roth, a banda degringolou. Nunca mais foi a mesma. Hoje vive de rockinhos baratos e baladas insossas para embalar incautos. Desde 1978 que virei a página dessa banda.

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    1. É, Paulo... esse disco definitivamente fecha a tampa de uma fase (das boas!). Sou suspeito para falar, pois gosto muito de Scorpions em geral. Acho alguns discos bem fracos, mas outros bemmm legais. O primeirão deles, com os Schenker nas guitarras, é toscão, mas tem muito som bom. Os clássicos dos anos 1980 são muito bons ('I'm Leaving You', por exemplo, tem um puta riff e um balanço sensacional... ou então, 'Arizona'). Dos mais recentes, acho que o Unbreakable e o último, Sting in the Tail, são muito bons... não têm a mesma pegada dos antigos, mas acertam na medida rock. Agora, o DVD Live at Wacken Open Air 2006 é muito bom, principalmente pq o Uli Roth participa tocando Pictured Life, Speedy's Coming e We'll Burn the Sky. Foi curioso vê0los tocar essas recentemente. Abraço!

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  2. Com o Mathias, gosto do "Lovedrive" e do "Blackout". Os mais recentes não conheço. O DVD que você citou também não vi. Vou procurar. Abração, Henrique.

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  3. Poxa, é bem verdade o que disse. Eu também tenho a mesma opinião sua, Scorpions devia ter mudado de nome depois de 78, pois a diferença de som é extrema, é outra banda absolutamente. Virou Pop e Porco

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  4. Valeu, Bill! Tem banda que passa por transformações radicais, como o Scorpions. Algumas vão para uma direção boa, até melhor, outras para um lado menos atrevido e criativo. Valeu a visita e grande abraço!

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