Andreas Kisser: 'Schizophrenia' foi tudo
Henrique Inglez de Souza
Talvez, quando se fala em Sepultura
clássico, discos como Beneath the Remains, Arise,
Chaos
A.D. e Roots surjam de imediato no assunto. Não é de se estranhar, já
que se tornaram a ilustração do grande sucesso que o quarteto brasileiro
conquistou mundo afora. Sagraram-se os mais conhecidos títulos na história
deles.
Porém, algo substancial houve entre a
saída do guitarrista Jairo Guedz e a entrada de Andreas Kisser. Isso ocorreu em
meados de 1987, durante o início das composições para o sucessor de Morbid
Visions (1986). O rearranjo no layout revelou uma combinação decisiva
para o direcionamento criativo-musical do grupo. Preparou o terreno para obras
tão viscerais quanto as citadas.
O marco dessa guinada chama-se Schizophrenia,
o derradeiro deles pela Cogumelo Records. Trata-se de um trabalho ímpar, cujo
reconhecimento ainda teima em cambalear entre o popular e o cult – algo a mim
um tanto agonizante, dada a relevância que tem. “Foi ali que começamos a criar
esse novo Sepultura”, avalia Kisser. “É um álbum de transição. Eles faziam um
death metal mais simples, direto, e com minha entrada vieram elementos mais
técnicos.”
De fato, houve uma troca de figurinhas
construtiva quando os universos se reuniram. Max Cavalera (guitarra, vocal),
Paulo Xisto Jr. (baixo) e Iggor Cavalera (bateria, então grafando o nome com um
“g”) estavam na onda do death metal linear, porrada. Já Andreas Kisser vinha do
heavy metal tradicional e de abordagens melodicamente mais trabalhadas, temperadas
por virtuosismo (sem fritação). Entre suas preferências, Metallica, Slayer,
Exodus, Black Sabbath, Ozzy Osbourne. A mistura dessa bagagem com a de seus companheiros
expandiu largamente os horizontes do grupo.
“Eles começaram a crescer comigo e eu
com eles, no que diz respeito a carregar aquela energia e à vontade de ter uma
banda, de seguir adiante – coisas que eu tinha perdido em São Paulo. Era muito
profissional [o esquema]”, conta o
guitarrista, que na ocasião largou a vida na capital paulista, incluindo seu
grupo, Pestilence, e se mudou para Belo Horizonte. Em Minas, além de concluir o
terceiro colegial, encarou uma rotina inédita e nada descompromissada com o
Sepultura. Ensaios diários.
Gênese
esquizofrênica
Quando Andreas Kisser apareceu, havia
composições em andamento – poucas. “Tinha partes de umas três músicas e não
muito de letra”, conta. “Comecei a mostrar ideias. A letra de Escape to the Void era de uma música
minha no Pestilence; Screams Behind the
Shadows já tinha o riff da abertura, e nós terminamos.” A primeira cria
efetiva dos quatro, a pura de raça, surgiu com From the Past Comes the Storms. “Era um riff meu, com o qual
tentamos criar uma Chemical Warfare [do Slayer] – e não tenho vergonha de
admitir isso!”
O material ilustra bem a intensidade que
sacudia as jam sessions. Embora estivessem preparando apenas o segundo disco do
grupo, o salto desde Morbid Visions era considerável. Mil
e uma influências temperavam um caldeirão repleto de entrosamento instantâneo. “Aprendi
com eles sobre punk, hardcore, Dead Kennedys, Corrosion of Conformity, e até
Sex Pistols e Ramones, coisas que não escutava muito”, lista Kisser, que
incorporou tais informações.
O jeito de abordar e as referências do
guitarrista redesenharam bastante o olhar de seus companheiros, especialmente
de Max e Iggor. Os riffs ficaram mais técnicos, as linhas de bateria
pluralizaram-se e as músicas ganharam mais solos de guitarra e partes
instrumentais.
A temática das letras também mudou, englobando
assuntos do tipo: o dia a dia, a rotina de viver em cidade grande, a paranoia.
O que se manteve mais ou menos igual foi o processo de composição. Ainda com o
inglês precário, as letras eram escritas em português e um amigo, Lino, as
passava para o idioma estrangeiro. Depois os quatro se viravam para encaixá-las
nas músicas. “Foi um laboratório, mesmo”, resumiu-me Kisser o espírito por trás
de Schizophrenia.
Em agosto de 1987, Max, Andreas, Paulo e
Iggor reuniram-se no J. G. Estúdio, em Belo Horizonte. De lá saíram com um
repertório de nove faixas gravadas, incluindo a bela e inusitada (para eles) The Abyss – uma peça solo de violão (um
flerte a Randy Rhoads, um dos ídolos de Kisser). Das poucas participações
especiais, a que desperta curiosidade é a de um certo Henrique Portugal. Sim, o
futuro tecladista do Skank! Ele era vizinho de rua deles, e topou o convite de
Max para gravar registrar algumas partes. Sua colaboração, por sinal, ainda teria
sequência nos dois discos seguintes, até Arise.
Schizophrenia nos faz notar um
parentesco forte com Beneath the Remains sem, no entanto,
nos deixar ignorar a crueza agressiva herdada de Morbid Visions. Além
disso, oferece peculiaridades, que, a meu ver, evidenciam-se em Inquisition Symphony, Screams Behind the Shadows e Septic Schizo. Com esse disco, sem
dúvida, o Sepultura virava o Sepultura.
“Criamos aquilo juntos, realmente.”
Uma
capa tosca, mas marcante
A Cogumelo Records deu liberdade ao
quarteto para definir inúmeros detalhes relacionados à parte gráfica de Schizophrenia
– desde a fonte que seria usada nos textos à escolha das fotos, interna e da
contracapa. A arte de capa veio das mãos de Ibsen, irmão de Pat Pereira, dona
da gravadora, juntamente com o marido, João Eduardo. Num primeiro momento, a
pintura desagradou à banda, mas permaneceu por causa do curto prazo que
restava.
“Não tivemos muito como mudar. Ficamos
meio descontentes na época, mas acabou se tornando uma capa icônica, original e
diferente. Representou, e representa, bem o que é aquele disco: é
esquizofrenia, é atirando para todo lado, é um pré-caos de música, letra e visual”,
valoriza Kisser.
Não se pode negar a particularidade daquele
azul claro nada discreto. Ao contrário da praxe no death/thrash metal, o grupo
acabou fugindo das cores e dos tons escuros, especialmente do preto (tão
clichê). Ainda que as pinceladas sejam quase naïf, a arte, em geral, virou uma
grande marca do álbum, que foi lançado numa edição caprichada de capa dupla.
“Nós estávamos um pouco à frente do
tempo, saindo daquela coisa do preto, do logo que ninguém sabe decifrar”, arrisca
o guitarrista. “Mostramos cor e possibilidades diferentes para o thrash metal. Então,
tenho muito orgulho dessa capa.”
Protagonismo
Schizophrenia inaugurou uma
série de aspectos. Colocou os caras numa turnê extensa e abrangente. Para quem
só havia tocado em três capitais (São Paulo, Rio de Janeiro e, claro, Belo
Horizonte), viajar com esse álbum representou um tremendo sucesso. E viajaram
bem! Foram a destinos longínquos, como Porto Alegre e o Nordeste. O show de
estreia de Andreas Kisser, por exemplo, aconteceu em Caruaru/PE.
Outra bem-feitoria foi a picada que o
registro abriu pela Europa, antes de sair Beneath the Remains – primeiro
lançamento internacional deles. Pirateado por lá, ajudou a criar uma valiosa base
de fãs no Velho Continente. Aliás, e principalmente, foi o cartão de visitas
que firmou a confiança nos olhos do mercado norte-americano – um feito inédito
para uma empreitada brasileira dedicada à música pesada.
“Schizophrenia foi tudo”, resume Kisser.
“Se não tivesse dado certo, eu não teria continuado com a banda, e talvez a
banda não teria continuado. Vai saber! Esse disco criou a possibilidade do
contrato com a Roadrunner Recordas. Sem ele, não teríamos conseguido. Mostrou
que não éramos uma banda simplesmente de death metal falando de satanás e magia
negra.”
No final de outubro de 2017, Schizophrenia
completou 30 anos. São três décadas de um projeto de vida, de uma fatia da
história que talvez não venha à cabeça imediatamente quando falamos de
Sepultura clássico. Mas às vezes o protagonismo é assim mesmo: acontece sem
necessariamente garantir o melhor lugar na foto. “Sei muito bem seu lugar em nossa
história”, arremata o guitarrista.
Andreas Kisser em 2017 (Foto: Rafael Mendes) |
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